Você já parou para pensar o que torna um texto ATEMPORAL, que captura aspectos universais da condição humana, sendo capaz de ressoar com diferentes gerações? Existem elementos que contribuem como temas comuns (amor, amizade, medo), personagens bem desenvolvidos e multifacetados, uma voz autoral distinta que não depende de modismos, mas sim de uma escrita que toca o leitor profundamente que pode ser reinterpretada em diferentes contextos. Como exemplo, peguei o texto, no gênero crônica, que considero difícil ser atemporal por suas características perenes.
A crônica “Eu Sei, Mas Não Devia“, escrita por Marina Colasanti em 1972, é uma reflexão contundente sobre a capacidade humana de se acostumar com situações adversas e até prejudiciais. A autora expõe, de maneira crítica e poética, como as pessoas se adaptam a rotinas estressantes, a condições de trabalho insatisfatórias, à poluição e à violência, muitas vezes sem questionar ou resistir. A mim soa como um alerta sobre a tendência de nos acomodarmos em rotinas vazias e repetitivas, que nos impedem de apreciar a beleza que nos cerca. No texto a repetição e a estrutura paralela servem para enfatizar o quão profundamente essas acomodações se enraízam em nossas vidas. A frase “A gente se acostuma” funciona como um refrão que reforça a resignação e a passividade, enquanto o trecho final, “Eu sei, mas não devia”, serve como um grito de alerta e resistência. É uma chamada para despertar e reconsiderar a maneira como aceitamos o inaceitável.
Gente! Isso foi em 1972 e, hoje ainda muitas dessas questões permanecem relevantes e, em alguns casos, tornaram-se ainda mais prementes. A crônica foi escrita antes da era digital. Agora, além de anúncios e comerciais na TV e revistas, enfrentamos um bombardeio constante de informações nas redes sociais, notificações de smartphones e publicidade online. E, a degradação ambiental e a crise climática são problemas globais que se intensificaram. A acomodação mencionada em relação à poluição e destruição dos recursos naturais é mais crítica do que nunca.
E, após essas 5 décadas a violência, infelizmente, continua a ser uma realidade em muitas partes do mundo, e a aceitação passiva da violência e das estatísticas de morte ainda é um desafio a ser superado. Soma-se a isso a sobrecarga de trabalho e a falta de tempo para si mesmo como questões persistentes. A cultura do trabalho excessivo e a “hustle culture” muitas vezes são glorificadas, aumentando o estresse e a exaustão.
Em mim a crônica de Marina Colasanti além de ser uma boa leitura, continua a ressoar como um poderoso lembrete da importância de não nos conformarmos com o que nos faz mal. É um chamado à ação para questionarmos e mudarmos as condições que prejudicam nossa qualidade de vida. A mudança começa quando paramos de aceitar passivamente o que deveria ser inaceitável e começamos a buscar e exigir melhores condições para nós e para as futuras gerações.
EU SEI, MAS NÃO DEVIA
A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora, a tomar café correndo porque está atrasado.
A gente se acostuma a ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo na viagem, a comer sanduíches porque não tem tempo para almoçar.
A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios, a ligar a televisão e assistir comerciais.
A gente se acostuma a lutar para ganhar dinheiro, a ganhar menos do que precisa e a pagar mais do que as coisas valem.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não a das janelas ao redor.
A gente se acostuma a não abrir de todo as cortinas, e a medida que se acostuma, esquece o sol, o ar, a amplidão.
A gente se acostuma à poluição, à luz artificial de ligeiro tremor, ao choque que os olhos levam com a luz natural.
A gente se acostuma às bactérias da água potável, à morte lenta dos rios, à contaminação da água do mar.
A gente se acostuma à violência, e aceitando a violência, que haja número para os mortos. E, aceitando os números, aceita não haver a paz.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza para preservar a pele.
A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto se acostumar, se perde por si mesma.
A gente se acostuma, eu sei, mas não devia.